19 de abril de 2024
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José Sarney – Ex-presidente da República

Rimbaud , o poeta das “Flores do Mal”, escreveu, com a angústia de viver o tempo futuro, a sentença de que “temos de ser absolutamente modernos”. A roda do mundo nos faz o passado parecer sempre melhor, vendo o presente como um vencer dificuldades e com a certeza de que a vida é feita com o dia-a-dia. O futuro nos seduz a pensar num terreno azul de soluções e esperanças. O passado é o já vivemos, já vencemos a graça da vida. A sensação do presente é o mar das sobrevivências, das ciladas do cotidiano, em que ainda há muito o que fazer para o próximo, para a humanidade e para acabar com todas as injustiças. É uma inconformação com o sofrimento, com o medo e com o próprio presente. Já o futuro é uma busca de esperança, no mínimo a incerteza quanto a dias piores. Foi Alçada Batista, o extraordinário escritor português, autor da “Peregrinação Interior”, quem me fez relembrar que o Padre Vieira tinha “saudades do futuro”, o que completa o ciclo das vivências, porque o racional são as saudades do passado.
Kundera, especulando sobre esse tema, considera que a “modernidade, conforme se vai envelhecendo, se converte em algo impressionante, como a única substituta da juventude”. Leio o que acontece no Afeganistão e fico a destruir tudo o que se pode pensar sobre o que é a modernidade e o que é o passado. Paro em uma página de Eça de Queiroz, nesta fase em que a releitura é um convite a não abandonar o hábito da leitura. Ele nos fala da guerra dos ingleses no Afeganistão no século 19. É uma página que confirma a dúvida sobre o moderno antigo ou o antigo moderno.
Vamos ler o Eça das “Cartas da Inglaterra”, a tratar desse mesmo tema da repetição da história e da tragédia desse país:
“Em 1847, os Ingleses, “por uma Razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do Império”… invadem o Afeganistão, e aí… apossam-se, por fim, da santa cidade de Kabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens…; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória… fumam o cachimbo da paz… Assim é exatamente (agora) em 1880.” Mudados os personagens, tudo igual em 1847, 1880 ou agora, 2001.
E Eça continua:
“…começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas, e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Kandahar -e num momento é aniquilado, disperso no pó da planície o exército afegão… Kandahar está livre! Hurra!”
“A bomba de Vaillant (anarquista que atacou o parlamento francês)… espalhou um terror mais intenso… porque, pela primeira vez, a sociedade sentiu a temerosa dinamite arremessada contra um dos seus grandes órgãos vitais, contra o centro regulador de suas funções…”
“O Governo decreta terríveis leis de repressão e, com o apoio entusiasta do país todo, os anarquistas são perseguidos, em montarias, como lobos…”
O moderno, assim, nos parece o futuro do ontem. É a mesma crueldade do terror, e a humanidade presa do medo, dominada pela violência. A fronteira entre a realidade e o abstrato fica indefinida. Mas não morre a esperança de dias melhores, sempre o sonho do reino da paz.
Enquanto não chega, vamos embrutecendo, inertes, insensíveis, em frente da televisão. Passam riscos de luz, relâmpagos de foguetes cruzando os céus.
É o cotidiano da modernidade, uma notícia da CNN.

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