28 de março de 2024
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José Sarney – Ex-Presidente da República

A era dos direitos humanos obriga nossas consciências a uma permanente cruzada contra todas as atrocidades, a maior delas o genocídio.
No cenário dos Bálcãs permaneceu, invulnerável no tempo, o ódio. Ele transitou no limiar da fúria e da loucura. Para nós, espectadores estarrecidos e revoltados, era impossível entender a catástrofe humana de Kosovo, onde um povo se consomia na agonia extrema da diáspora carregada de solidão e infortúnio. Se lançarmos um olhar no passado bem longe, vamos encontrar um pedaço da história do homem a transitar naquelas terras. Se chegarmos mais perto, depararemos com o impasse que deu início à Primeira Guerra Mundial.

O ódio é o mais primitivo dos sentimentos humanos. Está ligado ao medo e à vingança. É a negação do amor. O ódio destrói a razão, anula todas as formas do relacionamento humano. O ódio só se consome na destruição, na vontade de eliminar e banir. O fim do ódio é construir o nada. Por isso ele não se explica e é a negação da graça da vida. Mais destruidor quando se transforma em razão de Estado.

Como sentimento individual, é desintegrador da alma; como manifestação coletiva, é a geratriz dos fanatismos. Só o ódio foi capaz de promover o Holocausto, de ser o motor de limpezas étnicas. Foi ele que fez a Inquisição, a brutal intolerância da Irlanda do Norte, Kosovo, os fundamentalismos destruidores, a violência que aflora em muitas deformações do cotidiano mundial.

Che Guevara, numa carta à Conferência Tricontinental de Havana, reunida em 1966, para estabelecer estratégias de luta na América Latina, falando do ódio, escrevia: “O ódio intransigente ao inimigo que ia mais além das limitações do ser humano e o convertia em violenta máquina de matar”.
Com o fim da Guerra Fria, iam aflorar os conflitos hibernados, os nacionalismos fanáticos, as lutas étnicas e religiosas. Elas atravessam séculos e se concentram em formas de energia destruidora pronta a explodir. Podem levar uma eternidade, mas podem necessitar apenas de segundos, como nas manifestações terroristas.

Num mundo em que a informação passou a ser a primeira arma de poder, vê-se o perigo, pela capacidade multiplicadora das tecnologias atuais, da incitação ao ódio. Não foi por outra razão que o primeiro alvo dos foguetes americanos foi silenciar as estações de rádio e TV que levavam ao paroxismo a fúria contra Kosovo.

Era chocante a intervenção militar da Otan, violando todos os conceitos que acumulamos ao longo do tempo, da teoria da não-ingerência em assuntos internos de outros países.

Mas, vendo a outra face, como aceitar impassível o genocídio, a atrocidade massiva de Milosevic, determinando a destruição dos kosovares, condenando-os àquelas razias primitivas, quando a missão era matar mulheres, crianças e homens para não deixar descendência?

Os Estados Unidos e a Otan, abraçando a previsível impopularidade de uma causa nobre, cumpriram o difícil dever de tentar barrar aquela atrocidade.
Fazer Milosevic parar era dever da humanidade. O ódio não pode ser moeda nas relações internacionais.

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