19 de abril de 2024
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José Sarney – Ex-Presidente da República

A referência fundamental da vida está em nossos pais. Eles são o começar, o aprender e o despertar de tudo. Sou sempre um exilado da minha infância e, nessa, surge a figura dominante de minha mãe. Ficamos velhos, transferimos a nossos filhos a experiência de sermos pais, um elo na continuação da humanidade, mas não nos libertamos do sentimento de filho, uma maneira de sermos crianças.

Deus me deu a felicidade de envelhecer com minha mãe, chegada aos 90 anos, excepcional figura de mulher nordestina, com uma forte história de vida. Lembrava-se de tudo. Memória antiga e recente. Na seca de 1921, nascida em Correntes, Pernambuco, foi para o Maranhão em companhia do pai e de três irmãos excepcionais. Só possuíam o dia, a noite e o desejo de sobreviver. Meu avô, o velho Assuéro, resumia a saga desse povo de andarilhos, a sua viagem, numa quadra que repetia sempre ao relatar a caminhada: “Eu vi a cara da fome / na seca de 21/ ô bicha da cara feia / só mata a gente em jejum”.

Depois, já no caminho dos seus últimos anos, perguntei-lhe se não desejava voltar à Paraíba e a Pernambuco, rever lugares de suas lutas da juventude, quando se alistou numa volante para combater Cocada e Antonio Silvino, então os maiores cangaceiros do sertão nordestino. Respondeu-me pronto: “Se a minha alma tiver vergonha, não sai mais do Maranhão. Já tive até um neto que foi governador”. (Eu, em 1965).

Meu pai morreu cedo. Minha mãe, que o ajudava nos tempos difíceis da perseguição da ditadura Vargas costurando e fazendo doces para completar o orçamento familiar, passou solitariamente a comandar a todos. Seu estilo sempre foi o de nunca alterar a voz, nunca aplicar castigo, nunca entrar em disputas, exercendo as virtudes da paciência e da tranquilidade como forma de vida. Nos momentos de extrema dificuldade, combatia as doenças e as agruras da vida com a oração, com a caridade – seus ouvidos sempre abertos para a súplica e para o destino dos pobres. A humildade e a simplicidade faziam parte de seu modo de ser. Nem a notoriedade dos filhos e netos foi capaz de modificar o menor dos seus hábitos, que não toleravam nem a mudança no mais velho móvel de sua modesta casa. Seus exemplos de penitência marcaram a história da família. A doença de um filho lhe possibilitou oferecer a Deus, pela cura, um mês de dormir no chão, entregue à felicidade da graça que recebera. Outro problema maior lhe exigia sair com roupa de mendigo, sem que ninguém soubesse, como pedinte, a recolher esmolas que entregava ao cofre do pão da igreja de Santo Antônio.

Devo a minha mãe o coração que me deu vida e bondade. Nasci num lugarejo distante, nas fraldas da Amazônia, casa de chão batido, 50 metros quadrados, uma parteira velha, minha avó, meu pai e uma menina de dezoito anos, a parturiente. Nenhum presidente veio de tão longe. Mas ninguém teve maior admiração e orgulho, reverência e afeto, devoção e amor pela sua mãe quanto eu tenho por dona Kyola.

É essa relação que faz todos os homens voltarem no tempo, serem crianças, exilarem-se na infância e ouvirem as canções de ninar, quando nossos ouvidos velhos não ouvem mais senão as nossas próprias angústias e alegrias: flores abertas e flores murchas.

É nessa hora que o sentimento de colo, colo de mãe, nos traz o sabor da eternidade.

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